Bolsonaro trava Bolsa Família em cidades pobres e fila chega a 1 milhão

Todos os 200 municípios de menor renda do Brasil tiveram recuo na cobertura do programa

“Só nos resta pedir para que eles lembrem dos pobres”. Aldeane Santana, 30, tem três filhos, mora em Peixinhos, povoado do município de Morros (MA), e aguarda desde maio do ano passado para entrar no Bolsa Família.

O governo de Jair Bolsonaro congelou o programa mesmo nas regiões mais carentes do Brasil. Uma a cada três cidades mais pobres do país não teve novos auxílios liberados nos últimos cinco meses com dados oficiais divulgados (junho a outubro de 2019).

O levantamento feito pela Folha considera os 200 municípios de menor renda per capita do Brasil, apontados pelo IBGE em 2017. Em todos, houve recuo na cobertura e um ritmo de atendimento a novas famílias muito menor que em períodos anteriores.

Desde o ano passado, por falta de dinheiro, o governo passou a controlar a entrada de beneficiários no Bolsa Família. Com a barreira em todo o país, a fila de espera, que havia sido extinta em julho de 2017, voltou e não há previsão para ser novamente zerada.

Cerca de 1 milhão de famílias aguardavam, em janeiro, uma resposta do Ministério da Cidadania para ingressarem no programa de proteção social e transferência de renda aos mais pobres.

Em Morros, nenhuma família foi atendida desde junho. A cobertura do programa na cidade caiu para o menor nível desde de 2017, apesar do esforço para estender o Bolsa Família a povoados mais afastados e regiões ribeirinhas.

Para iniciar o processo de entrada no programa, a referência dada pelos moradores do município é uma só: a casa da Espírito.

Maria do Espírito Santo é a secretária de Assistência Social da cidade desde maio de 2017. “Eu gostaria que a Folha levasse um apelo a eles: Morros precisa da liberação de benefícios; tem gente precisando”.

Segundo ela, nenhuma carta ou aviso do governo federal foi recebido no ano passado. As concessões de auxílios, de repente, foram interrompidas.

Reconhecido internacionalmente, o programa atende famílias com filhos de 0 a 17 anos e que vivem em situação de extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 89 mensais, e pobreza, com renda entre R$ 89,01 e R$ 178 por mês. O benefício médio é de R$ 191.

O Bolsa Família enfrenta, sob Bolsonaro, o período mais longo de baixo índice de entrada de novos beneficiários da história do programa.

Isso também ocorre nos municípios mais pobres. Entre janeiro de 2018 e maio do ano passado, 26 famílias passavam a ser atendidas por mês no grupo de 200 cidades brasileiras com menor renda per capita. Os dados mais recentes apontam que a média mensal recuou para cinco famílias.

Dessas 200 cidades, 37 tiveram apenas um novo benefício liberado de junho a outubro e, em 64 desses municípios, houve bloqueio total do programa de junho a outubro.

O congelamento foi registrado, por exemplo, em Guaribas (PI), cidade berço do Bolsa Família, e em Belágua (MA). O Maranhão concentra a maior parte das cidades mais carentes.

No cenário que se percorre de São Luis a Belágua, os traços da região, como carne de bode e a quantidade de urubus nas rodovias, se tornam mais fortes. A economia local se enfraquece e o comércio à beira da estrada cresce. Juçara —nome dado na região ao açaí— e produtos derivados de mandioca, inclusive cerveja, são anunciados.

Belágua, cidade de 7,5 mil habitantes, é onde termina a rodovia estadual MA-325. Também é onde os índices de mortalidade infantil e saneamento estão piores que a média nacional. Fundado em 1994, o município tem só 1% de arrecadação própria, um indicador de baixa atividade econômica e dependência de recursos do governo federal.

Sem dinheiro, o casal Ivanete, 19, e Denilson dos Santos, 22, teve que trocar o gás de cozinha pela lenha na hora de cozinhar mandioca e feijão para a filha Ágata dos Santos, 1 ano e 9 meses. Em situações excepcionais, eles matam um dos frangos que rodeiam a residência, localizada num bairro fora da área urbana.

“Pedimos o [benefício] do Bolsa Família há 9 meses. Toda vez que vou lá [no Centro de Referência de Assistência Social] me falam para esperar”, conta Ivanete.

Membro do comitê municipal Mais IDH-Belágua, Benilson da Silva é agente de saúde da prefeitura e visita as famílias da região desde 1997. “Reduzir o Bolsa Família é uma perda para a economia da cidade, mas também para a população. O programa reduziu o número de crianças desnutridas aqui”, avalia.

O congelamento prejudica também gestantes. Uma das vertentes do programa busca proteger mulheres pobres durante a gravidez.

Raissa Naiva, 18, mora em Axixá (MA). Ela pediu o benefício quando tinha dois meses de gestação. Com o filho Luis Augusto Naiva, de dois meses, no colo, Raissa ainda aguarda na fila de espera. “Eu achei que [o programa] era para ajudar gente que precisa. É como se eu estivesse abandonada”.

Com fila crescente e redução nas concessões, em 2019 o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família recuou de 14,3 milhões, em maio, para 13,1 milhões em dezembro.

Segundo o Ministério da Cidadania, o enxugamento é causado pelo pente-fino no programa, que cancelou benefícios pagos irregularmente a famílias. Mas a média de cancelamentos de 2019 seguiu a tendência dos anos anteriores.

De janeiro de 2017 a maio do ano passado, cerca de 250 mil novos benefícios eram liberados por mês em todo o país. Essa taxa caiu para 5,4 mil de junho a outubro.

Desde outubro, o Ministério da Cidadania é questionado pelo Congresso e pela imprensa sobre a fila de espera.

Em janeiro, a pasta respondeu a pedidos feitos pela Lei de Acesso à Informação, mas somente após ordem da CGU (Controladoria-Geral da União). Ao divulgar os dados, porém, o governo apresentou uma média anual da fila de espera (494,2 mil famílias).

Segundo integrantes do governo, documentos internos mostram que a fila continuava zerada até maio e, desde então, explodiu —chegando ao patamar de 1 milhão.

Procurado, o Ministério da Cidadania não quis comentar a reportagem.

Para o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, a busca por irregularidades é saudável ao programa, mas, ao mesmo tempo, é necessário dar garantias aos mais pobres diante das dificuldades da ativida-
de econômica do país. “É momento de esticar a rede de proteção social, e não retirá-la”.

O governo promete, desde 2019, reformular o programa. Ainda não há previsão de quando será apresentada uma proposta. O Bolsa Família tem neste ano um orçamento de R$ 29,5 bilhões, abaixo
dos R$ 32,5 bilhões de 2019.

“Não existe política pública sem financiamento regular, permanente”, critica Maria Lúcia Lopes, professora do Departamento de Serviço Social da UnB (Universidade de Brasília). Para ela, o orçamento do programa deveria ser fixo, em vez de abrir brecha para uso político.

Na reformulação, o governo planeja mudar o nome do Bolsa Família.

Fonte: Folha de São Paulo